Soma (Brazil)

January 2008

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Fugazi
Comunicação
é a chave !

No editorial do primiro número da +Soma, deixamos claro que o que nos move é o espírito do faça-você-mesmo, presente em grande parte do que costumamos cobrir, e assim, “amplificar o que existe de mais interessante na cultura contemporânea.” É de conhecimento até do mundo mineral a importância e peso do Fugazi tanto para a música independente quanto para a cultura contemporânea como um todo. O quarteto de Washington D.C – que entrou de férias desde 2002 – capturou o espírito de uma época, reconfigurou sua realidade e projetou para o futuro valores e conceitos a serem operados.

Aproveitando os 20 anos do primeiro show da banda e o lançamento no exterior do fantástico livro de fotos do Fugazi de Glen E. Friedman, resolvemos homenagear o grupo e, de tabela, toda a cultura independente da qual somos crias e atores ativos. Convidamos pessoas no Brasil que tiveram sua carreira ou vida afetadas pelo trabalho do grupo, além de realizar uma entrevista exclusiva com o próprio Glen, o fotógrafo definitivo do hardcore e do hip hop americano dos anos 80 – sem esquecer obviamente de seu pioneiro trabalho em relação ao skate moderno ao cobrir toda a geração Z-Boys. Outro personagem que tem sua vida intimamente ligada à música e a cultura independente, e uma curiosa ligação com o Fugazi, é o polêmico e aclamado engenheiro de som/músico Steve Albini. Abaixo da linha do Equador, realizamos uma entrevista com o Ordinaria Hit de São Paulo – muito provavelmente o grupo mais radical ao seguir a estética e ética político-cultural do Fugazi.

Se um dos grandes legados do Fugazi é estabelecer definitivamente a noção que é preciso criar um ambiente que mantenha e fomente toda uma comunidade criativa independente, nada mais justo que, ao falar do grupo, darmos vozes aos que ajudam a manter este espírito vivo hoje. ﰀ

São tantas as evidências que é difícil não dizer o óbvio nesta introdução: Glen E. Friedman é o mais importante fotógrafo de sua geração. Ou melhor: é o grande retratista das três grandes revoluções culturais juvenis das últimas quatro décadas. Quem mais acompanhou, viveu e retratou para o mundo do skate tal qual conhecemos hoje, o início da era hip hop e a primeira e mais importante leva do punk norte-americano? Nada mais emblemático que fechar esse ciclo lançando o livro definitivo de fotos do Fugazi, Keep your Eyes Open,publicado na mesma data em que o grupo fez seu primeiro show, exatos vinte anos atrás.

Por que somente Glen alcançou um nível de excelência e teve a sensibilidade de conseguir se colocar na hora certa, no lugar certo? Primeiro, porque freqüentou as duas costas dos Estados Unidos em função da separação de seus pais e pode participar ativamente de todos esses movimentos. Segundo porque era jovem, inquieto e rebelde. Daí a se juntar inicialmente aos skatistas Z-Boys foi um passo. Aliás, foi seu livro Dogtown - The Legend of the Z-Boys, realizado com C.R. Stecyk III que deu origem ao premiado documentário Dogtown and Z-Boys, do qual é co-produtor. Eis a fórmula do sucesso? Não exatamente. “Muita gente também esteve naqueles lugares e muitos também fizeram fotos. Mas para mim aquilo tudo importava, me importava muito. Por isso fiz aquelas fotos e por isso saíram tão bem. Porque me importava de verdade e as levava a sério”, descreveu Glen à uma publicação espanhola. Fotografar Jay Adams, Tony Alva, Run DMC, LL Cool J, Public Enemy, Misfits, Suicidal Tendencies (inclusive produziu seu álbum de estréia, o disco de hardcore mais vendido dos anos 80), Dead Kennedys, Beastie Boys, Bad Brains, Minor Threat, Black Flag e tantos outros é apenas conseqüência.ﰀ

Nessas 3 décadas de trabalho como fotógrafo, você fotografou grandes nomes do punk/hardcore e do hip hop americano. Teve algum nome do punk/hardcore ou do hip hop que você queria ter fotografado e não pôde? Por que?

Bem, com certeza tiveram alguns artistas que ainda estavam fora do radar da maioria das pessoas que eu gostaria de ter fotografado, mas por uma razão ou outra eu simplesmente não tive a chance. Os que vem em minha mente de cara são Penelope Houston (Avengers), Method Man, Snoop Dog, Dead Prez... Tem mais alguns outros, mas em geral, eu consegui fotografar a maioria das pessoas que eu quis fotografar no momento certo. O punk foi cooptado pela grande mídia; o hip hop é um elemento estabelecido na música pop e, em sua maioria, pouco preocupado com ideais políticos; o skate virou um grande paradigma de comércio jovem. Você sempre retratou estes universos através da idéia de rebeldia. Como você enxerga essas culturas hoje? O que te inspira atualmente na cultura jovem?

Eu acho que todas essas culturas ainda são muito significativas nos dias de hoje, embora a mídia de massa venha desgastando muito a imagem delas. Mas NÓS sabemos que ainda existem aqueles que são “hardcore” e são esses caras que ainda conseguem inspirar as pessoas atualmente. Pessoalmente, a única coisa que me inspira mais do que tudo na cultura jovem atual, é a forma como os jovens com cérebro e espírito rebelde usam a internet. Essa cultura radical da internet é muito inspiradora pra mim. Comunicação sempre foi a chave e sempre será. Skatistas [Z-Boys], Black Flag, o início da cultura hip-hop, ninguém esperava sucesso… Você fazia porque amava aquilo, estava no seu coração e você tinha que fazer. Em um mundo terminalmente cooptado e globalizado, em que o menor indício de subversão é apropriado pelo mainstream e reembalado para as massas como o novo cool, eu continuo resistindo. Nunca diga que não é possível escapar disso… Ninguém precisa participar disso. E precisamos reconhecer que pessoas fazem essas escolhas conscientemente – ou inconscientemente, se forem grandes idiotas. Não se venda tão cedo. Pode não ser fácil, mas você não precisa de tanto.

Sua fotografia não busca apenas retratar o outro; Glen quer, sobretudo, inspirá-las. A idéia de objetividade e imparcialidade também é algo que não cabe em sua filosofia. Seu trabalho pessoal (é bom dizer que Glen já fez fotos comerciais, como por exemplo, para o Pearl Jam e Lenny Kravitz) é participativo. Não foi por acaso que Ian Mackaye disse que “enquanto muitos fotógrafos fizeram fotos do Fugazi, Glen fazia fotos com a gente”. “Se o que quer é refletir como é algo por dentro e capturar de verdade o que é um estilo de vida, tem que vivê-lo primeiro.Caso contrário, não será mais que um safado outsider tentando se aproveitar”, sintetiza o fotógrafo de 45 anos.

Vi em uma entrevista você falar que não gostava de nenhum fotógrafo atual. O que falta para a nova geração? No Brasil, há um garoto (ve- getariano como você!) que lançou um livro de fotos de punk rock atual e que diz que a grande inspiração para ele é seu trabalho. Qual conselho você daria para os novos fotógrafos que se inspiram em seu trabalho? Apenas que sigam seus corações e sonhos honestos, compartilhem imagens e momentos com os outros o máximo que puderem. Dar aos outros o que a fotografia dá a você, passando da melhor forma o que aquela inspiração e/ou espírito em torno daquele momento lhe oferece. Mantenham a integridade, e se estiverem nessa por fama, fortuna, ou para fazer parte do mundinho bacana das artes, que se fodam!! Se você tem um bom olhar e está fazendo algo único, possivelmente grandes coisas vão acontecer. Mas não deixe a possibilidade dessa grande coisa ser a inspiração e te influenciar, porque isso vai aparecer no seu trabalho de uma maneira ruim. Se a fotografia não está no seu coração simplesmente desista agora e procure algo que esteja.

Glen lançou seis livros, todos editados pela sua própria editora Burning Flags Press. Além disso, publicou várias edições do seu fanzine My Rules a partir de 1982 (que valem pequenas fortunas nos leilões virtuais na net) e participou de, pelo menos, outros dezenove livros. Sem contar suas fotos em discos, que começou com uma capa da banda skatepunk Agression em 1983 e culminou com as capas de Check Your Headdos Beastie Boys (Glen os conheceu durante uma exibição do A Grande Farsa do Rock n Roll, filme dos Sex Pistols) e do It Takes a Nation of Millions to Hold us Back, do Public Enemy.

Em 2005, lançou o livro Recognize, um livro de fotografias retratando... nuvens! Obviamente, o trabalho teve grande repercussão no exterior. O que teria passado pela cabeça do fotógrafo? Glen atribui a motivação deste trabalho ao estudo dos pintores renascentistas. Assim como aqueles retomaram o humanismo nas artes, através da honestidade e disciplina, ele pretende revitalizar a função primária e vital da fotografia: a composição do mundo natural, combinada com um sentimento de maravilhamento em relação à magnitude do que está em nossa volta.

Todas as fotos do livro Recognizeforam tirados de pequenas janelas de avião? Quanto tempo você gastou neste projeto?

Basicamente, Recognizeé o documento de uma missão em que estive envolvido nos primeiros cinco anos do início desse século. Estou muito animado em relação à singular beleza do planeta em todas as suas formas, e com mais freqüência do que gostaria, acho nada inspira- dor o que as pessoas chamam de arte nos dias de hoje. Realmente es- tou tentando trazer as pessoas de volta ao básico, reconhecendo a beleza por si só. E não é somente sobre isso. Eu senti que tinha a responsabilidade de fazer isso! Com intuito de contribuir para o “realinhamento da estética visual” da geração mais jovem e da cultura como um todo, que pra mim, parece ter regredido nos últimos 15 anos. É uma tentativa de trazer isso de volta ao início, “começar do zero”, como dizem por aí. Eu espero conseguir abrir os olhos das pessoas novamente. Eu acho que é um tipo de continuação das idéias definidas no meu outro livro The Idealist (1998, ampliado em 2004), mas concentrado em um assunto e o levando mais à fundo. Você entender as coisas em um nível mais social é artisticamente relevante. Isso realmente significa despertar e acordar alguns cérebros mortos. Issoé mais do que uma proclamação de sua relevância para a arte, a fo- tografia e minha perspectiva sobre as coisas; eu realmente quis surpreender alguns céticos. Mas realmente isso é algo que espero que inspire as pessoas. Eu realmente amo esse trabalho e estou muito animado com as possibilidades, impacto e relevância que ele pode ter na visão artística e na visão geral das coisas. Mas você nunca sabe quando vai fazer algo do gênero, se isso vai ou não ser assimilado pelas pessoas. Mas tive que fazê-lo. E você pode nem pensar sobre isso tudo! Acho que as pessoas precisam ver com os próprios olhos e decidir, é um trabalho muito pesado e muito leve ao mesmo tempo.

No prefácio de Recognize, Ian Svenonius (ex-Nation Of Ulysses, ex- Make Up, atual Weird War) diz que o Faça-Você-Mesmo é A arte política por excelência de nossa época. Você tem sua própria editora, lançou um livro sobre a banda independente mais importante dos últimos 20 anos... As políticas do FVM ainda podem criar uma arte relevante no século XXI?

Faça-Você-Mesmo será a única maneira de colocar pra fora idéias importantes neste novo século. Permitir-se ser cooptado a fim de atingir uma audiência mais vasta ou mesmo sucesso financeiro nunca será uma opção para alguém com integridade. Essas “pessoas pensantes” vão passar por cima desse monte de merda que está por aí, elas podem não influenciar milhões de uma vez como as grandes corporações fazem, mas sabe aquela história da tartaruga e do coelho? Mensagens reais vão chegar às pessoas reais e as mensagens falsas serão todas esquecidas em algumas semanas ou minutos. Diga a verdade, não tenha medo de dizer o que acha, tenha uma forte ética no trabalho, conserte o que você puder no mundo e foda com o que precisar ser fodido!

Você falou em entrevista recente que “O que o Fugazi fez para o verdadeiro espírito do punk é imensurável”. O que seria esse “verdadeiro espírito”? Ele ainda faz sentido hoje? E qual a contribuição do Fugazi para ele? É tudo o que eu disse na outra questão! (risos). Mas realmente essa é a verdade, o verdadeiro espírito punk é a verdade, a mais honesta das verdades. Não se deixar levar por esse monte de merda e mentira que nos rodeia, não ter qualquer interesse em nada que possa manter outras pessoas pra baixo. Não ter interesse em fazer qualquer coisa tirando proveito dos outros. Gritando em voz alta com a maior frequência possível essas verdades que uma pessoa honesta vê todos os dias vivendo em uma circunstância social não muito justa para uma espécie que tenha um cérebro do tamanho do nosso. Integridade ao extremo! Um espírito de saber que nós podemos fazer o que quisermos sem eles, e o quanto mais nós fazemos do nosso jeito mais iremos inspirar outras pessoas a mostrar um exemplo para outros aprenderem, mudando comportamentos ao redor do mundo e talvez o destino do planeta inteiro. E que porra você pensa disso?

Guy Picciotto disse em entrevista que “Se o Fugazi fosse um corpo, eu não o chamaria de cadáver, mas de um corpo em estado de animação em suspenso, criogênico. Talvez uma civilização futura ressuscite o grupo”. Glen parece não querer esperar que outra civilização o faça. Todas as potencialidades que enxerga no grupo, parecem ser exatamente o que ele espera de seu próprio trabalho, ética e estética – teoria e prática de mãos dadas. Manter a “chama acesa” da história recente do Fugazi é quase como literalmente manter viva a comunidade da qual se sente parte. Daí o por quê de gastar cinco anos de sua vida neste projeto. É um trabalho para manter viva uma comunidade global íntegra em sua independência e sempre um passo criativo adiante do mundo das grandes corporações – parece ser assim que essas culturas se mantém longe dos tentáculos do sistema. E para isso, vale realmente um trecho de letra do Fugazi que nomeia o livro: Keep Your Eyes Open (mantenha seus olhos abertos).

ﰀPara saber mais www.burningflags.com Veja outras fotos de Glen no site www.maissoma.com.


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